Tese
A construção dialógica da identidade em pessoas intersexuais: o x e o y da questão
Fecha
2013-06-11Autor
Canguçú-Campinho, Ana Karina Figueira
Lima, Isabel Maria Sampaio Oliveira
Canguçú-Campinho, Ana Karina Figueira
Lima, Isabel Maria Sampaio Oliveira
Institución
Resumen
O advento do nascimento repercute de forma direta na dinâmica da família, que, ao se deparar com a indefinição dos genitais, tem suas expectativas em torno da criança, nesse primeiro momento frustradas. Os significados antes construídos para referir-se à criança tornam-se inadequados, surgindo a necessidade de criar outros que possam expressar a sua existência. A existência de uma criança intersexual também se configura como um desafio para os profissionais de saúde, seja pela necessidade de ampliação do conhecimento sobre os mecanismos que influenciam a formação da identidade, seja pela necessidade de discussão sobre as questões éticas próprias ao atendimento a estas pessoas. É na intersecção entre estes dois contextos: familiar e médico que se configura e se reconfigura a identidade da pessoa intersexual. O presente estudo pretendeu compreender: como os significados e práticas de cuidado em saúde participam da configuração da identidade em pessoas intersexuais, e como a pessoa intersexual experiência e configura seu senso de identidade na interlocução com o outro. Esta tese é composta de três artigos: o primeiro artigo envolveu uma revisão de literatura com o objetivo de esboçar o estado da arte, tanto dos estudos sobre a identidade quanto dos estudos sobre a intersexualidade, lapidando o objeto de estudo: construção de identidade em pessoas intersexuais. Realizaram-se buscas em portais eletrônicos (CAPES e Scielo) e em websites (SAGE). Foram encontrados 28 artigos que incluíam como descritores as seguintes palavras chaves: intersexualidade e identidade, intersexo e identidade (em inglês e português). No entanto, ao analisar o conteúdo dos artigos, constatou-se que, na maioria das vezes, a identidade não é abordada como objeto principal, sendo tratada como tema paralelo. As reflexões teóricas da Psicologia e do Feminismo nortearam produções de outras disciplinas como a Sociologia, a Arqueologia e Teologia. A Psicologia destacou aspectos subjetivos ligados ao intersexual, à influência do ciclo de vida e a experiência do próprio intersexual. A perspectiva feminista destacou a identidade de gênero e a influência dos discursos dominantes na formatação do sexo e gênero. A cirurgia cosmética foi veementemente criticada. Foram identificados dois posicionamentos distintos do feminismo em relação ao intersexo: uma posição percebe o intersexual como uma terceira categoria de gênero enquanto outra posição acredita que criar outra categoria de gênero não resolve a questão das hierarquias e dominação ente gêneros. A relevância da cultura e os discursos sociais na construção da identidade do intersexual foram destacados nos estudos, em todos esses campos disciplinares. O segundo e o terceiro artigo priorizaram as observações dos atendimentos médicos e as entrevistas com os profissionais médicos do serviço de genética da UFBA. O segundo artigo analisou os significados sobre a pessoa intersexual expressos e elaborados pela família e profissionais de saúde quanto ao sexo, gênero e sexualidade e os resultados do artigo apontam para a coexistência da perspectiva biomédica e da integralidade no que se refere à visão sobre a pessoa intersexual.A intersexualidade é configurada especialmente pelo saber médico, que a classifica como uma má formação congênita, uma anormalidade, um erro. O intersexual passa a ser visto a partir da dimensão orgânica, perdendo-se a perspectiva da pessoa como um todo. O corpo intersexual expressa a ambivalência e a tênue fronteira entre os gêneros; há um temor de que o corpo materialmente ambíguo possibilite uma identidade ambivalente. Neste sentido, ocorrem dois movimentos principais: a desvalorização semiótica da ambigüidade através da noção de intolerância assimilativa proposta por Valsiner (2007) e intervenção corporal através das cirurgias “reparadoras” nos órgãos sexuais. Entre os médicos, houve a utilização de metáforas na tentativa de integrar a visão de intersexo às novas concepções de sexo e gênero. A visão de gênero e sexo tradicional também é questionada surgindo uma concepção ainda linear, mas multifatorial. Descreve-se uma escada, em que cada um destes elementos funciona como degraus para determinação do sexo.Em relação à identidade de gênero, esta é considerada como um produto das crenças, desejos e expectativas familiares, mais do que uma dimensão singular do sujeito. Compreende-se a identidade, aqui, como um processo maleável que se configura na interdependência entre o contexto familiar e o corpo. O terceiro artigo teve como objetivo principal analisar as práticas em saúde direcionadas à pessoa intersexual, enfatizando a relação entre a família, os profissionais de saúde e a pessoa intersexual. Os resultados revelaram que as práticas em saúde direcionadas para esta população específica organizam-se em torno de três dimensões do cuidado: capacidade técnica, disposição afetiva e garantia de direitos. Ainda que a visão técnica apresente-se como dominante, percebem-se movimentos no sentido de incorporar a dimensão afetiva e do direito nas práticas de atendimento às pessoas intersexuais e sua família. Na condição de intersexo, a medicalização toma grandes proporções ao impactar não só nas rotinas de vida, na forma de criação dos filhos, nas relações sociais, na redução da privacidade corporal, mas na própria construção da identidade destas pessoas. O quarto artigo foi elaborado a partir das entrevistas realizadas com as pessoas intersexuais assistidas pelo mesmo serviço de genética e teve como objetivo analisar a construção da identidade em pessoas intersexuais a partir da Teoria do Self Dialógico. Os resultados apontaram que tanto as vozes dos familiares, amigos, vizinhos, profissionais de saúde, como seus silêncios, possuíram um importante papel na configuração da identidade ao participar como mediadores na construção de significados sobre o corpo. O silenciamento familiar sobre a história destas pessoas foi compreendido como forma de protegê-las do sofrimento que o “saber” poderia promover. No entanto, este silenciamento diante do evento do nascimento e a existência de um corpo dito “ambíguo” possibilitou a construção de significados ambivalentes sobre identidade de gênero. O corpo foi compreendido como ambivalente, sendo rejeitado pelo outro e em parte pela própria pessoa. A aceitação do corpo ocorre na medida em que este é modificado por medicamentos ou cirurgias. O processo de construção da identidade envolveu diversas posições de Eu: Eu-diferente, Eu-igual/semelhante, Eu-doente. Outras posições de Eu se configuraram enquanto estratégias de manejo de tensões: Eu- singular, Eu-mulher diferente / Eu- homem diferente, Eu-Ausente/Alienado, Eu-desempregado(a), Eu-isolado(a) e Eu- em transformação. A identidade é assim dialogicamente construída e envolve descontinuidades, mas se direciona, principalmente, para a construção de um sentimento de estabilidade do self. O Eu-diferente/singular aparece como uma posição central do self, regulando outros posicionamentos e orientando o processo de construção da identidade. Conclusão A experiência tanto da pessoa nascida intersexual quanto da sua família é então configurada no encontro com saberes e poderes próprios ao campo da medicina, ensejando a coexistência de um olhar prioritariamente biológico e um outro olhar que inclui outras dimensões da pessoa como: sentimentos, valores e experiência. O senso de si é então elaborado a partir da negociação de sentidos familiares e médicos sobre o corpo e gênero, mas envolve uma dimensão pessoal que organiza e dá sentido às experiências tornando-as base para a configuração da identidade.